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Por: Carlos Alberto Pinto de Carvalho da equipe de Litígios CTA_
Introdução
No dia 26 de maio de 2015 foi sancionada pela presidência uma nova lei de arbitragem. Na verdade, uma reforma da lei de 1996, que desde o pronunciamento de sua constitucionalidade em 2001, tem provado seu valor na resolução de disputas fora do Poder Judiciário.
A reforma incorporou entendimentos jurisprudenciais já consolidados pelo Superior Tribunal de Justiça, resolvendo questões pontuais, em especial no âmbito societário, estabelecendo que a convenção de arbitragem incluída no estatuto social obriga a todos os acionistas, garantido ao acionista dissidente o direito de recesso.
Esta reforma também expôs a arbitragem a diversos riscos, que poderiam importar em sérios retrocessos ao instituto. Apesar da boa atuação da comissão de juristas sob a regência do Ministro Luis Felipe Salomão na elaboração do projeto, não era possível saber ou mesmo prever como o projeto ficaria após cumprido o trâmite legislativo em ambas as casas.
No fim, graças a uma boa atuação do Senado Federal, o projeto de lei manteve as conquistas da lei anterior, resolveu algumas questões pontuais e consolidou expressamente avanços da jurisprudência, como por exemplo a inegável possibilidade da administração pública adotar a arbitragem como forma de resolução de conflitos em suas contratações.
O projeto de lei representou também um avanço ao derrubar mitos que muitas vezes são alimentados por advogados alheios a esta nova realidade na resolução de disputas, ou por aqueles ainda resistentes à ideia de que a prestação jurisdicional não é monopólio estatal.
Superados os riscos do procedimento legislativo, o projeto de lei ainda enfrentaria um obstáculo, a sanção presidencial, que não tem nos honrado com os pronunciamentos mais esclarecidos nos últimos tempos.
A presidência, e nesse caso é melhor não pessoalizar mais ainda o assunto, entendeu por bem vetar dois pontos no projeto de lei: A arbitragem nas relações de consumo e nas relações trabalhistas.
É compreensivo que haja um temor em tirar do Estado a resolução de disputas em áreas que são tão caras à sociedade, mas lendo os artigos vetados e as razões do veto, fica a nítida impressão de que o gabinete presidencial, bem como sua assessoria jurídica, sequer leram os artigos que vetaram. Segue uma breve análise:
Arbitragem em relação de consumo
Artigos vetados
“§ 2o Nos contratos de adesão, a cláusula compromissória só terá eficácia se for redigida em negrito ou em documento apartado.
- 3oNa relação de consumo estabelecida por meio de contrato de adesão, a cláusula compromissória só terá eficácia se o aderente tomar a iniciativa de instituir a arbitragem ou concordar expressamente com a sua instituição.” (não grifado no original)
Razões do Veto
“Da forma prevista, os dispositivos alterariam as regras para arbitragem em contrato de adesão. Com isso, autorizariam, de forma ampla, a arbitragem nas relações de consumo, sem deixar claro que a manifestação de vontade do consumidor deva se dar também no momento posterior ao surgimento de eventual controvérsia e não apenas no momento inicial da assinatura do contrato. Em decorrência das garantias próprias do direito do consumidor, tal ampliação do espaço da arbitragem, sem os devidos recortes, poderia significar um retrocesso e ofensa ao princípio norteador de proteção do consumidor.” (não grifado no original)
Comentários
A simples leitura dos parágrafos vetados já expõe a incongruência das razões do veto. O parágrafo terceiro deixa claro que a cláusula compromissória só vale se, depois de surgida a disputa, o consumidor iniciar a arbitragem ou com ela concordar expressamente, se iniciada pela empresa. Assim, o veto é jurídica e semanticamente vazio.
Arbitragem na relação trabalhista
Artigos vetados
- 4oDesde que o empregado ocupe ou venha a ocupar cargo ou função de administrador ou de diretor estatutário, nos contratos individuais de trabalho poderá ser pactuada cláusula compromissória, que só terá eficácia se o empregado tomar a iniciativa de instituir a arbitragem ou se concordar expressamente com a sua instituição. (não grifado no original)
Razões do Veto
“O dispositivo autorizaria a previsão de cláusula de compromisso em contrato individual de trabalho. Para tal, realizaria, ainda, restrições de sua eficácia nas relações envolvendo determinados empregados, a depender de sua ocupação. Dessa forma, acabaria por realizar uma distinção indesejada entre empregados, além de recorrer a termo não definido tecnicamente na legislação trabalhista. Com isso, colocaria em risco a generalidade de trabalhadores que poderiam se ver submetidos ao processo arbitral.” (não grifado no original)
Comentários
Aqui o veto comete algumas impropriedades adicionais, além de mais uma vez ficar claro que seria uma faculdade do empregado iniciar a arbitragem ou concordar com a sua instituição, depois de surgido o conflito.
A primeira refere-se à expressão “distinção indesejada entre empregados”. A expressão usada no veto dá a entender que a distinção de empregados que possuem funções diferentes seria antijurídica, mas não é. Vários são os exemplos disso na legislação trabalhista, como as horas extras que não se aplicam a funcionários que possuem cargo de gestão, além de outros direitos que não se aplicam a diretores estatutários.
Finalmente, a ideia de risco à generalidade de trabalhadores não se aplica, pois (i) a norma só se aplica a administradores ou diretores estatutários e (ii) mesmo depois de surgida a disputa, ainda que haja cláusula compromissória, a arbitragem só aconteceria por vontade do empregado.
Mitos da Arbitragem
Alguns mitos que já estavam sendo dissipados em relação à arbitragem voltaram à tona por conta desses vetos. Uma parcela considerável de advogados, promotores e juízes simplesmente não compreendem a origem contratual da jurisdição arbitral, muito menos o conceito da resolução privada de conflitos, aplicando sofismas dos mais criativos para gerar uma instabilidade sobre os avanços desse instituto.
Um mito que voltou à tona com esses vetos é o de que a arbitragem é apenas para os iguais e que o árbitro não possuiria as mesmas faculdades práticas do juiz estatal, para “desequilibrar” a relação processual em favor do mais fraco. Nada mais incorreto, pois a garantia de defesa do consumidor, por exemplo, e a sua eventual condição de hipossuficiência emanam das normas que regem essas relações (CDC) e não do julgador em si.
Tanto nas relações de consumo quanto nas relações de trabalho a norma cogente (obrigatória e indisponível) já foi idealizada para impor tratamento diferenciado às partes, equilibrando a eventual hipossuficiência de uma parte face ao poder econômico da outra.
A origem contratual da jurisdição arbitral é, geralmente, fonte de diversos conceitos equivocados. Entre os maiores equívocos, está o de considerar que uma cláusula compromissória de arbitragem teria o poder de desvirtuar uma relação de consumo, que é obrigatoriamente regida pelo Código de Defesa do Consumidor ou, ainda, desnaturar a relação de trabalho, obrigatoriamente regida pelas leis trabalhistas.
A legislação especial que trata destas relações em território nacional, ou mesmo em situações transnacionais, é inafastável e a possibilidade de escolha do sistema de resolução de disputa não tem força para alterar a lei aplicável ao contrato, inclusive por decorrer de norma de ordem pública, conforme determinam os artigos 2º, § 1º da Lei de Arbitragem, art. 1º da Lei 8078/90 e art 1º da CLT
Ou seja, caso um procedimento arbitral não respeitasse as peculiaridades aplicadas em casos advindos de relação de consumo ou de trabalho, o laudo arbitral dele decorrente seria nulo, não produzindo quaisquer efeitos jurídicos.
Finalmente, é importante notar que a reforma na lei de arbitragem trazia um avanço para as relações de consumo. Afinal, a lei anterior já previa a cláusula arbitral em contratos de adesão, sem a clara proteção ao consumidor que a reforma tentou instituir através dos parágrafos vetados.
Por conta disso, são diversos os casos já julgados pelo Poder Judiciário em que prevaleceu a cláusula compromissória arbitral em relações de consumo, ainda que sem a concordância do consumidor na instituição da arbitragem, o que demonstra que o veto, em verdade, representou um retrocesso aos direitos dos consumidores.
Conclusão
A comissão que conduziu a reforma da já bem sucedida Lei de Arbitragem acertou nas alterações realizadas. Inclusive no que se refere às normas vetadas, visto que a atenta leitura dos dispositivos revela que os vetos opostos pela Presidência da República não possuem base jurídica e sequer decorrem de um raciocínio lógico que corresponda ao texto do projeto de lei.
Por outro lado, seja por razões políticas, seja por uma assessoria jurídica falha, os vetos presidenciais serviram apenas para enfraquecer o poder de escolha do consumidor e do trabalhador, indo contra a tendência virtuosa de garantia das liberdades individuais e qualificação nas relações de consumo e de trabalho.
Finalmente, os vetos, além de impróprios aos direitos que pretendem resguardar, alimentam mitos que enfraquecem o instituto da arbitragem como um todo e merecem ser derrubados pelo legislativo.