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POR: DIOGO SILVA MARZZOCO
Abril 2018
A República Federativa do Brasil, em que pese contar já com 518 anos desde seu descobrimento pelos portugueses, presenciou pouco tempo o exercício da democracia plena, ainda que muitos estudiosos sustentem – a exemplo de Robert Dohl – que jamais nenhum país alcançou tal utopia.
Daí dizer-se que o operador do direito até pouco tempo sempre o aplicou tendo em vista tão somente a área do direito que o regulamentava, fechando os olhos para a Constituição. Neste sentido o civilista só tinha olhos ao Código Civil, o processualista somente ao diploma processual correspondente, e assim por diante.
Corroborando o quanto dito acima, Nelson Nery Júnior informa que “isto se deve a um fenômeno cultural e político por que passou e tem passado o Brasil ao longo de sua existência. Referimo-nos ao fato de o País ter tido poucos hiatos de tempo em Estado de Direito, em regime democrático, em estabilidade, enfim”
Isto justifica o fato de que o operador do direito não observava – assim como em certos casos ainda não observa – como deveria eventual violação à Constituição Federal ao passo que a alegação de descumprimento a um preceito constitucional era e ainda é tratada como mera matéria de defesa.
Todavia, hodiernamente o estudo do Direito Constitucional como base fundamental de todos os seguimentos das Ciências Jurídicas tem sido muito mais presente, de forma que a violação à um preceito fundamental da Constituição Cidadã tende a não ser mais visto como mera alegação de defesa e sim como um desrespeito a toda uma ordem jurídica.
Isto se justifica ao passo que a Constituição é o documento que organiza um Estado, ou seja, o elemento e gênese de um Estado, em cujo documento está o fundamento de validade de todo o ordenamento jurídico. Nesta esteira nos ensina José Afonso da Silva:
“A constituição do Estado, considerada sua lei fundamental, seria, então, a organização dos seus elementos essenciais: um sistema de normas jurídicas, escritas e costumeiras, que regula a forma do Estado, a forma de seus órgãos, os limites de sua ação, os direitos fundamentais do homem, e as respectivas garantias, Em síntese, a constituição é o conjunto de normas que organiza os elementos constitutivos do Estado.”
Portanto, as normas de Direito Civil, bem como todas as vigentes em determinado país, encontram legitimidade na norma ápice, uma vez que é esta que lhes confere validade em determinado ordenamento jurídico.
Seguindo esta sistemática, o Código Civil de 2002 acabou por consagrar normas de caráter geral para assegurar a aplicação das normas fundamentais na relação entre particulares, tais como a boa-fé objetiva assim como a função social do contrato exaradas nos artigos 421 e seguintes.
Ao contrário do que ocorria no século XIX, atualmente o operador do direito não pode se ater tão somente ao texto do próprio código civil em uma busca incessante da mens legis, porquanto estaria atuando de forma extremamente empobrecida e de forma complemente condenável do ponto de vista de Orlando Gomes no texto “A evolução do Direito Privado e a Técnica Jurídica”.
Diante disto é que a melhor técnica Jurídica preconiza que ao aplicar as normas do Código Civil sempre deve-se colimar o atingimento dos valores constantes na Constituição Federal, notadamente aqueles considerados como Direitos Fundamentais que, outrora eram considerados apenas de aplicação entre Particulares e Estado mas que passou-se a aplica-los nas relações entre particulares, o que se chamou de “Eficácia horizontal dos direitos Fundamentais”.
A Constituição trouxe em seu bojo a proteção ao ser humano, notadamente por apontar como um dos Fundamentos da República Federativa do Brasil enquanto Estado Democrático de Direito a proteção à dignidade da pessoa humana.
A partir disto é que diz-se que os direitos fundamentais são afetos ao ser humano justamente pela sua condição humana e que para sua existência digna deve-se garantir a igualdade, liberdade, propriedade entre outros.
No que concerne à eficácia horizontal dos direitos fundamentais, não se pode esquecer que as Constituições, de maneira geral, acabaram por ser concebidas como instrumento de limitação da atuação governamental que a partir de então deveriam observar as normas protetoras do ser humano, precipuamente a sua dignidade.
Entretanto, com a evolução das relações não só entre particulares e Entes Estatais mas também entre os próprios particulares é que surgiu a necessidade de se assegurar a fiel observação das normas fundamentais como fato de reequilíbrio das referidas relações como a analisada no julgado apresentado na questão.
Poder-se-ia dizer que então que a proteção dos direitos fundamentais em relações particulares macula o Princípio da Autonomia Privada e poder de autorregulação das partes, com o que não podemos concordar porquanto em que pese uma das normas fundamentais ser justamente a liberdade, em todas as suas vertentes, todo e qualquer direito não é ilimitado e, portanto, encontra barreiras na preservação de outros direitos.
Ademais, como dito acima, os valores e princípios insculpidos na Constituição Federal não são ilimitados posto que encontram limitação nos demais princípios que igualmente são consagrados na Carta Cidadã.
Por este motivo, não raro, na rotina do ofício judicante o magistrado se depara com situações em que o caso concreto implica necessariamente em um conflito de princípios Constitucionais.
Ada Pellegrini, ao citar Canotilho nos informa que:
“o facto de a Constituição constituir um sistema aberto de princípios insinua já que podem existir fenômenos de tensão entre os vários princípios estruturantes ou entre os restantes princípios constitucionais gerais e especiais. Considerar a Constituição como uma ordem ou sistema de ordenação totalmente fechado e harmonizante significaria esquecer, desde logo, que ela é, muitas vezes, o resultado de um compromisso entre vários actores sociais, transportadores de ideais, aspirações e interesses substancialmente diferenciados e até antagônicos ou contraditórios.”
Neste contexto, cabe, não só ao magistrado, mas a todos os operadores do Direito, sopesar os valores em conflito e verificar aquele que mais se adéqua com os interesses postos.
Nenhuma norma deve ser considerada isoladamente, sob pena de se exercer uma exegese superficial e falha do dispositivo, posto que compõem eles um conjunto harmônico, exercendo limitações recíprocas, de modo que “cada princípio ou norma constitucional não seja posto por terra por outro princípio ou norma constitucional.”
Diante disto, Alexandre de Moraes indica o caminho a seguir quando estiverem em conflito duas normas ou princípios Constitucionais:
“Desta forma, quando houver conflito entre dois ou mais direitos ou garantias fundamentais, o intérprete deve utilizar-se do princípio da concordância prática ou da harmonização de forma a coordenar e combinar os bens jurídicos em conflito, evitando o sacrifício total de uns em relação aos outros realizando uma redução proporcional do âmbito de alcance de cada qual, sempre em busca do verdadeiro significado da norma e da harmonia do texto constitucional com sua finalidade precípua.”
Ou seja, o que propôs o citado doutrinador é que na hipótese de conflito de duas normas, valores ou princípios fundamentais, “há que se utilizar a harmonização entre os valores ou em alguns casos, mediante a preferência ou a prioridade de certos princípios.”
Vejamos o julgado abaixo:
APELAÇÃO CÍVEL. DIREITO CIVIL E CONSTITUCIONAL. AÇÃO ORDINÁRIA. DECLARAÇÃO DE NULIDADE E INEXIGIBILIDADE DE MULTAS CONDOMINIAIS. CONTRARRAZÕES. INTEMPESTIVIDADE. NÃO CONHECIMENTO. AGRAVO RETIDO NÃO CONHECIDO. VIOLAÇÃO DE NORMAS INTERNAS DO CONDOMÍNIO. IMPOSIÇÃO DE SANÇÃO PECUNIÁRIA EM DESFAVOR DO CONDÔMINO INFRATOR. AUSÊNCIA DE CONTRADITÓRIO E DA AMPLA DEFESA. NULIDADE. TEORIA DA EFICÁCIA HORIZONTAL DOS DIREITOS FUNDAMENTAIS. APLICAÇÃO DOS DIREITOS FUNDAMENTAIS TAMBÉM NO ÂMBITO DAS RELAÇÕES PRIVADAS.
1. Não devem ser conhecidas as contrarrazões de apelação apresentadas fora do prazo de 15 dias previsto pela lei processual civil, porquanto intempestivas. 2. Não merece conhecimento, por inobservância do disposto no § 1º do art. 523 do Código de Processo Civil, o agravo retido interposto pela parte autora. 3. Embora as entidades condominiais possuam autonomia para gerir seus interesses e sua organização (inclusive impondo sanções administrativas e pecuniárias aos seus condôminos), é certo que esse espectro de autonomia não é absoluto e comporta restrições orientadas, a fim de respeitar e prestigiar os direitos fundamentais encartados na Constituição Federal. 4. Por força da aplicação da teoria da eficácia horizontal dos direitos fundamentais, os direitos fundamentais não representam limitações única e exclusivamente oponíveis ao Estado, passando a alcançar, também, as relações privadas. 5. As relações privadas existentes entre condomínio e condôminos são também alcançadas pela eficácia horizontal dos direitos fundamentais, de forma que a imposição de penalidades contra condôminos, mesmo encontrando guarida legal, deve imperioso respeito às garantias constitucionais do contraditório e da ampla defesa (art. 5º, LV, da Constituição Federal). Não respeitadas tais garantias, as sanções impostas pelo condomínio padecem de nulidade. 6. Apelação conhecida e não provida. Agravo retido não conhecido. (TJ-DF – Apelação Cível: APC 20100112192574) (grifo nosso)
Obviamente que o condomínio tem soberania para se autorregrar, de forma que, a princípio, suas regras são irretocáveis, dentro de determinada normalidade e desde que conformes com o ordenamento jurídico.
Entretanto, assim como ocorreu no caso visto acima, em qualquer outro há que se ter em alto apreço os direitos e garantias Constitucionais voltados à dignidade da pessoa humana, tais como o contraditório e a ampla defesa, sendo tal proteção o mais nítido exemplo de eficácia horizontal dos direitos fundamentais.
O escritório CKM Advogados possui um time de advogados experiente, apto a orientá-lo e assessorá-lo em qualquer demanda.
Para saber mais sobre o assunto ou para sanar qualquer outra dúvida, contate o autor do artigo, Diogo Silva Marzzoco (diogo.marzzoco@localhost) ou pelo telefone 5171-6490